Os generais não querem mandar em Bolsonaro; só propõem uma gestão pragmática. O ministro e o governador não politizam a saúde
Jair Bolsonaro e o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming: um estadista precisa entender que ideologias não podem atrapalhar os negócios dos países | Foto: Reprodução
O médico Oswaldo Cruz nasceu em 1872 e morreu em 1917 — aos 44 anos —, de insuficiência renal. Formado em Medicina no Brasil, especializou-se na França, no prestigioso Instituto Pasteur. Em 1899, quando apareceram casos de peste bubônica em Santos, o governo brasileiro entrou em contato com o cientista Émile Roux, cofundador do Instituto Pasteur, e pediu um nome para criar um “instituto de soroterapia antipestosa”. O francês não titubeou: o próprio Brasil tinha o nome adequado — Oswaldo Cruz, de 27 anos.
Mais tarde, em 1903, Oswaldo Cruz foi nomeado diretor de Saúde Pública pelo presidente Rodrigues Alves (com gripe espanhola, morreu em 1919). A partir daí, além da febre amarela, combatia a epidemia de varíola. As medidas de combate aos vetores das epidemias e os gastos com as ações sanitárias, criticados por políticos e médicos, geraram instabilidade e o governo passou a ser criticado dura e publicamente na imprensa. O médico, para preservar o presidente, disse: “Apresento minha exoneração para não criar dificuldade ao governo”.
Oswaldo Cruz (de cabelos brancos) e o presidente Theodore Roosevelt, dos Estados Unidos | Foto: Reprodução
Rodrigues Alves não cedeu e preservou o auxiliar, dando-lhe proteção e aumentando os recursos para a área de saúde. “Naquele tempo o governo prometia e cumpria”, relata o médico Clementino Fraga, no livro “Vida e Obra de Osvaldo Cruz” (José Olympio, 186 páginas). (A editora optou por Osvaldo e não Oswaldo.) Para combater a febre amarela, provocada por um mosquito, o brasileiro leu atentamente as pesquisas feitas por médicos e cientistas que combateram a doença em Cuba. Por isso, combateu tenazmente o mosquito. Quanto à peste bubônica, o governo articulou inclusive esquadrões de caçadores de ratos. Pulgas vivem nos ratos e transmitem a doença.
Quando Oswaldo Cruz decidiu pela vacinação obrigatória contra a varíola, que matou milhares de pessoas, houve uma resposta popular, em parte espontânea e em parte articulada por políticos. Até Ruy Barbosa, a celebridade da Bahia, ficou contra o governo, alegando que a vacinação obrigatória feria a liberdade individual. Feria, é certo. Mas garantiu a sobrevivência das pessoas. Aproveitando a crise, chegaram a tentar um golpe de Estado para derrubar Rodrigues Alves, que, embora aconselhado, decidiu não fugir. Na questão da vacina, recuou num ponto: deixou de ser obrigatória.
A luta do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e dos médicos brasileiros atuais não é inteiramente diferente da de Oswaldo Cruz. Há vários tipos de resistências. No caso da febre amarela, enquanto Oswaldo Cruz dizia que o vetor da contaminação era um mosquito, outros, inclusive médicos, sugeriam que a contaminação também poderia se dar por contágio com roupas sujas de indivíduos que estavam doentes. Portanto, os locais onde viviam tais pessoas deveriam ser “desinfectados”. O especialista estava certo, e seus críticos, errados. Neste momento, quando propõe o isolamento das pessoas — para reduzir o número de contaminados e permitir que o setor de saúde se prepare, da maneira mais adequada possível — e sugere um exame mais detido da hidroxicloroquina, antes que o imaginário popular a transforme numa espécie de vacina, o que há de mais obscurantista no próprio governo (o tal Gabinete do Ódio, espécie de Ministério Informal de Maldades) e na sociedade ataca Mandetta nas redes sociais. Desconsidera-se, inclusive, que o médico não é contra o medicamento — pelo contrário, é a favor. Só está cobrando mais exames sobre a eficácia real contra Covid-19. A se acreditar no que sugere Bolsonaro, a Cloroquina cura tudo — até mau-olhado.
Walter Souza Braga Netto, ministro da Casa Civil, e o presidente Jair Bolsonaro: o general, um operador eficiente, sabe que é subordinado e não extrapola | Foto: Reprodução
O governo de Bolsonaro não é, porém, obscurantista como um todo. Além de Mandeta, Tereza Cristina (Agricultura), Tarcísio de Freitas (Infraestrutura), Paulo Guedes (Economia) e Sergio Fernando Moro (Justiça), que têm estatura, há os ministros militares, que são gabaritados e, sim, democratas (não querem saber de ouvir falar em golpe coisa alguma).
Militares são fonte de equilíbrio no governo de Bolsonaro
Entre os militares que contribuem para o governo ser mais efetivo e conciliador estão Tarcísio de Freitas (engenheiro), Augusto Heleno, Eduardo Villas Bôas (mesmo doente, é um conselheiro com perfil de estadista), Walter Braga Neto, Luiz Eduardo Ramos (ministro-secretário de Governo) e Hamilton Mourão.
Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, dado o alinhamento político e administrativo, é visto como do grupo que “excede”, “reacionário”. Suas palavras são candentes, mas, no governo, é mais moderado do que imaginam os adversários. Não põe álcool na fogueira, mas, alinhando-se, “esfria” os “esquentados”. É um realista absoluto. Luiz Eduardo Ramos é discreto, conciliador e, embora firme, não altera a voz para conversar com os interlocutores (não há quem trave relacionamento com o militar que diga não que se trata de um homem cordial, democrático e pragmático). Não fosse o general, as relações com o Congresso, sobretudo com a Câmara dos Deputados, seriam ainda piores.
Hamilton Mourão: radical como general e moderado como vice-presidente | Foto: Reprodução
Mitômanos de praxe, ancorados não apenas nas redes sociais, mas também em sites aparentemente sérios, criaram a ficção de que o general Walter Braga Netto deu um golpe e se tornou o verdadeiro presidente. Nada mais falso. Ocorre que todo governo precisa de um operador, pois o presidente é um estadista e precisa se relacionar com a sociedade e os demais poderes. Portanto, no governo, Braga Netto é um operador. Mas não tem nenhuma ambição de ser “chefe” do presidente. Pelo “ódio” que se criou à ditadura civil-militar, deixa-se, por vezes, de examinar o que são as Forças Armadas de fato. Nelas prevalecem a hierarquia e a disciplina. Bolsonaro pode até ter menos “luzes” do que alguns de seus ministros militares, mas estes entendem, com o máximo de precisão, que é o chefe — até 31 de dezembro de 2022, uma quinta-feira.
O que os generais fazem pelo governo Bolsonaro e pelo país é tornar a gestão mais operosa e, também, moderar o presidente — que é impulsivo. Mas mandar em Bolsonaro, que não aceita cabresto, ninguém manda. Na verdade, até por ter sido militar e saber que os generais realmente o defendem, ouve-os com atenção. Recentemente, quando pretendia demitir Mandetta, civis (menos Ônyx Lorenzoni, que defendia Osmar Terra para o cargo de ministro da Saúde) e, sobretudo, militares aconselharam-no a não fazê-lo.
Jair Bolsonaro e Augusto Heleno: o general excede publicamente e modera internamente — é um estrategista | Foto: Reprodução
Não que Mandetta seja amado por muitos no governo — a maioria avalia que está, sim, tirando proveito do recém-estrelato, com sua pinta de Marcelo Mastroianni dos trópicos, mas também admite que está fazendo um bom trabalho e conseguiu galvanizar o apoio da população. Os militares, com o apoio de alguns civis (Sergio Moro entre eles), disseram a Bolsonaro o óbvio: a demissão de Mandetta seria jogar não só a sociedade contra o governo, mas também, e sobretudo, travar, ainda que apenas de imediato, o trabalho de evitar que mais pessoas sejam contaminadas pelo coronavírus. E, também, mortas em decorrência da Covid-19. A permanência de Mandetta não é um caso de amor, e sim de pragmatismo. Militares são, acima de tudo, práticos e objetivos. Eles sabem que o debate ideológico é excelente, mobiliza o cérebro e aquece a alma, mas não salva vidas. O momento é mais de buscar inspiração em Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves, reis da conciliação que tinham experiência política ampla, do que em Olavo de Carvalho — filósofo que, inteligente (e panfletário pouco consequente), não tem experiência alguma com o ato de governar. Há pessoas que são excelentes para campanhas políticas, mas não são úteis para quem precisa governar e ampliar o diálogo com a sociedade, não apenas com militantes políticos. Mesmo um presidente de direita, se o regime é democrático, precisa estabelecer diálogo com setores com os quais não comunga ideologicamente. É o que tem feito o vice-presidente Hamilton Mourão.
Luiz Eduardo Ramos e Bolsonaro: o general é realista e cordial no trato com deputados federais e senadores | Foto: Reprodução
O general Mourão é o exemplo de como, uma vez (no) governo, é preciso mudar o comportamento. Antes, na oposição, era radical e sugeria, até, a derrubada do governo — quiçá, na época, mais para agudizar o clima de instabilidade. No poder, porém, existe outro Mourão — pragmático e conciliador. Ele também defendeu a permanência de Mandetta. Nunca um civil deveu tanto a tantos militares — que, insistamos, são estrategistas. Mais tarde, se quiser, Bolsonaro poderá afastar o ministro. Agora, seria um erro tático que prejudicaria inclusive a estratégia política do presidente — a reeleição em 2022. Se afinar o discurso com Mandetta, longe de favorecer o ministro, Bolsonaro vai beneficiar o governo e a si próprio. É provável que sua popularidade volte a subir.
Mandetta e Caiado: salvando vidas
Parece que no Brasil deste tempo há uma pressa para verificar quem destrói mais pessoas. Ah, o Mandetta está fazendo sucesso, aparecendo muito — então “precisamos” detoná-lo. Destruir os “bons”, em nome da busca de uma improvável sociedade perfeita — que nunca virá, assim como não se procederá à construção de homens perfeitos (os homens são sempre os possíveis) —, resulta, no mais das vezes, na preservação dos “maus”, que, no geral, são mais ágeis, espertos e articulados.
Luiz Henrique Mandetta: o ministro é objetivo, transparente e eficiente — é o que importa | Foto: Reprodução
Não há dúvida de que Mandetta é, no momento, um ministro que funciona, e quem diz isto são os médicos e autoridades científicas mais qualificados do país. O isolamento horizontal não é contestado pela maioria de infectologistas, epidemiologistas, pneumologistas, entre outros especialistas. Ao mesmo tempo, o ministro está contribuindo, ao lado dos governadores — porque se trata de um problema tão nacional quanto globalizado —, para requalificar o sistema de saúde. Ganhou tempo para melhorar a assistência aos brasileiros. Assistência que não será perfeita, porque não há tempo hábil e não há recursos financeiros sobrando, mas será a possível, e bem melhor do que a que já existia. O coronavírus vai provocar uma sacudida geral na saúde do país — que precisa ser melhorada inclusive no básico, como ter respiradores, por exemplo. O SUS é o sistema ideal, mas precisa ser reorganizado. Não é suficiente sugerir que é parecido com o do Canadá, precisa aproximar-se, em termos de assistência qualificada, do sistema da terra onde nasceram os escritores Saul Bellow e Carol Shields.
Há quem acredite que a imprensa incensa Mandetta para “atingir” Bolsonaro. É uma visão estreita. A imprensa percebe que, se não é um Albert Schweitzer ou um Drauzio Varella, é o homem adequado para comandar a operação de salvação de vidas. Os militares que estão com Bolsonaro entenderam o mesmo. Portanto, unir-se a Mandetta, gostando-se ou não dele, é torcer pelos brasileiros — todos eles. Ah, mas o Mandetta! Ora, quem avalia as pessoas pelos extremos deve saber que, assim, ninguém “presta”. Não se tem nem amigos quando não se avalia os indivíduos pela média. Quem usa os extremos para avaliar pessoas — cobrando uma perfeição inatingível — tende à paranoia. Se é ninguém é “bom”, parecem raciocinar os gabinetistas do ódio, todos podem ou devem ser destruídos. A palavra da moda é “canalha”.
Ronaldo Caiado: o governador não politizou a crise da saúde | Foto: Assessoria do Governo
O governador de Goiás, Ronaldo Caiado, é médico, especializado na França, como Oswaldo Cruz. Se o coronavírus não “explodiu” no Estado, gerando mais contaminação e mais mortes, isto se deve, em larga medida, ao fato de ser um gestor firme e responsável. Há quem pense em Caiado como autoritário. Na prática, não é. Ele exerce sua autoridade, delimitada pela lei, e não aprecia floreios populistas. Observe que não joga para a plateia e diz o que ela precisa e não o que às vezes quer ouvir. Toma decisões rápidas, mas de caráter democrático, em defesa do interesse público (e não de segmentos específicos). O enfrentamento com Bolsonaro não tem a ver com política, e sim, fundamentalmente, com saúde pública — assunto que, como ele tem enfatizado, não deve ser politizado.
O que o país pede é menos briga, mais conciliação. Menos rancor, mais diálogo. Menos ressentimento, mais doçura. E, claro, mais união.
(O fundador do Jornal Opção, Herbert de Moraes Ribeiro, pedia aos seus editores e repórteres que lessem o Discurso de Gettysburg. Vale a pena ler ou reler o que Abraham Lincoln, um leitor percuciente de Shakespeare, escreveu. Noutro discurso, o presidente dos Estados Unidos disse: “Todo reino dividido contra si mesmo é devastado; e toda cidade ou casa, dividida contra si mesma não subsistirá”.)
O discurso de Gettysburg, de Abraham Lincoln
“Há 87 anos, os nossos pais deram origem neste continente a uma nova Nação, concebida na Liberdade e consagrada ao princípio de que todos os homens nascem iguais.
“Encontramo-nos atualmente empenhados em uma grande guerra civil, pondo à prova se essa Nação, ou qualquer outra assim concebida e consagrada, poderá perdurar. Eis-nos em um grande campo de batalha dessa guerra. Eis-nos reunidos para dedicar uma parte desse campo ao derradeiro repouso daqueles que, aqui, deram suas vidas para que essa Nação possa sobreviver. É perfeitamente conveniente e justo que o façamos.
Abraham Lincoln proferindo o célebre Discurso de Gettysburg | Foto: Reprodução
“Todavia, numa visão mais ampla, não podemos dedicar, não podemos consagrar, não podemos santificar este local. Os valentes homens, vivos e mortos, que aqui combateram já o consagraram, muito além do que nós jamais poderíamos acrescentar ou diminuir com os nossos fracos poderes.
“O mundo muito pouco atentará, e muito pouco recordará o que aqui dissermos, mas não poderá jamais esquecer o que eles aqui fizeram.
“Cumpre-nos, antes, a nós, os vivos, dedicarmo-nos hoje à obra inacabada até este ponto tão notavelmente adiantada pelos que aqui combateram. Antes, cumpre-nos a nós, os presentes, dedicarmo-nos à importante tarefa que temos pela frente — que estes mortos veneráveis nos inspirem a uma maior devoção à causa pela qual deram a última medida transbordante de devoção — que todos nós aqui presentes solenemente admitamos que esses homens não morreram em vão, que esta Nação, com a graça de Deus, renasça na liberdade, e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desapareça da face da Terra.”
Abraham Lincoln
19 de novembro de 1863 — Cemitério Militar de Gettysburg, Pensilvânia, Estados Unidos.